Editoria: Vininha F. Carvalho 06/08/2005
A radiação costuma ser associada a todo tipo de tragédia, de Hiroshima a Chernobyl. Mas doses calculadas dela estão ajudando pesquisadores da USP a desenvolver vacinas contra protozoários, os microrganismos mais complexos do planeta.
Uma delas já mostrou bom potencial contra o Toxoplasma gondii, o causador da toxoplasmose, contra o qual até hoje não há vacina eficiente.
A idéia de usar a radiação numa vacina nasceu do trabalho conjunto de cientistas do Instituto de Medicina Tropical, ligados à Faculdade de Medicina da USP, com os do Ipen (Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares).É o que explica Heitor Franco de Andrade Júnior, coordenador da equipe.
"Um trabalho feito pelo pessoal do Ipen tinha mostrado que as toxinas do veneno de cobra, quando eram irradiadas com raios gama, induziam uma resposta melhor nos macrófagos [células do sistema imune]", afirma.
Foi então que surgiu a idéia de usar esse princípio para criar uma forma de imunização mais confiável contra o Toxoplasma gondii, um micróbio que, apesar de estar por todo lado no Brasil -para dar uma idéia, 60% da população do Estado de São Paulo tem ou teve a criatura no organismo, é capaz de causar estragos sérios em pessoas com deficiência imunológica(como doentes de Aids e transplantados) e em mães grávidas e fetos.
Andrade explica que o toxoplasma é um parasita "inteligente" do ponto de vista evolutivo, porque raramente mata seu hospedeiro. Adaptado a boa parte dos mamíferos e também a algumas aves, o micróbio só se reproduz sexuadamente no intestino dos seus hospedeiros definitivos, os felinos.
Sexo no intestino "O toxoplasma não quer te matar. O que ele quer é fazer sexo no intestino de um gato", brinca Andrade. É que, como
qualquer criatura com reprodução sexuada, o toxoplasma se diversifica e se torna mais adaptável ao trocar genes usando o sexo. Ele se espalha por outras espécies graças às fezes dos gatos, que carregam cistos com o parasita, posteriormente ingeridos por ratos, ovelhas, porcos, bois e pelo homem.
Em seu trabalho, os cientistas usaram o micróbio inteiro como antígeno,ou seja, como fator capaz de provocar a imunidade contra o T. gondii. O pulo do gato, porém, é que o protozoário recebe uma dose de radiação antes, que não o mata, mas é suficiente para impedir que ele se reproduza no organismo do hospedeiro.
O protozoário "castrado" continua com todas as suas outras funções vitais intactas. Para todos os efeitos,é como se o hospedeiro que o recebe tivesse sido imunizado pelo micróbio
sadio. Isso, acreditam os pesquisadores, tornaria a vacina muito mais eficiente. Os testes em camundongos mostraram um grau de imunização tão grande quanto o produzido pelo protozoário sadio. O trabalho mostrando o desempenho da vacina foi publicado neste mês na revista científica "Vaccine".
Para Andrade e seus colegas Roberto Hiramoto (autor principal
do artigo) e Andrés Galisteo Júnior, o próximo passo é encontrar uma maneira de ministrar a vacina por via oral, da maneira como ocorre naturalmente a infecção do protozoário.
De acordo com Hiramoto, o mesmo método está sendo testado no protozoário Leishmania, causador da leishmaniose, doença que faz 30 mil vítimas por ano no país. "Mas ainda estamos verificando os efeitos da radiação nele", ressalva.